sexta-feira, outubro 15, 2010

Diz o avô e diz o bebé

Hoje é daqueles dias em que preferíamos não sair da cama.
Hoje passaremos a ganhar menos e a pagar mais. É como uma hiper-inflação num só dia: desvalorizamos. Hoje há OE. Um OE imposto. Um OE de impostos.

São mais impostos, novas taxas e serviços obrigatórios, menos deduções e benefícios. Para toda a gente, generalizado, pelas formas mais surpreendentes. A necessidade aguçou o engenho do Ministério das Finanças, que confeccionou um Orçamento pudim "Boca Doce: é bom, é bom, é. Diz o avô e diz o bebé". É bom, é...

Literalmente: o avô paga mais IRS na sua pensão e o bebé passa a ser contribuinte obrigatório à nascença. Ao mesmo tempo que cortam o cordão umbilical que o liga à mãe, atam-lhe o cordão fiscal que o ligará ao Estado. E como para ser contribuinte é preciso comprar o Cartão do Cidadão: são 7,5 euros, se faz favor.

Andam a brincar com o bebé. Há uns anos baixaram-lhe o IVA às fraldas, depois subiram; no ano passado prometeram-lhe um cheque de 200 euros que nunca lhe entregaram; este ano obrigam-no a registo fiscal. Não é para ter graça, é um exemplo do nível a que chega este Orçamento na busca de qualquer receita, e uma parábola para o que é a política orçamental portuguesa: a total inconstância fiscal, que desce num ano o que no outro sobe, sem racionalidade nem previsibilidade. Quem investe num País assim? Nem os portugueses.

Não é só essa lista de negra de impostos (IRS, IRC, IVA, IMI...), através de aumentos de taxas e de menos deduções e benefícios. Hoje, muitos medicamentos estão mais caros que ontem, hoje há portagens nas Scut, hoje são anunciados aumentos das tarifas da electricidade... Salve-se o que se puder: os fundos de pensões dos bancários são transferidos à revelia do chumbo do sindicato e as portagens são impostas atropelando os tribunais. Há uma inacreditável caça ao turista (a quem se vai cobrar quase cem euros para andar nas Scut!), pede-se que as empresas de telecomunicações paguem o Cinema em vez do Ministério da Cultura...

Portugal está desesperado. Já é cansativo repetir a revolta contra quem na política mentiu até hoje. É preferível prevenir quem nos vai mentir a partir daqui. Porque depois da mentira de partidos do centro virá a demagogia de partidos das extremas. Quer ver? Com a informação revelada nesta edição, tanto se pode dizer que o novo imposto sobre a banca vai gerar cem milhões de euros e o corte de salários poupar mil milhões, como afirmar que o Governo tira à banca um décimo do que tira aos funcionários públicos... A quem quer incitar a revolta é preciso fazer o aviso: cuidado com o que deseja, pode tornar-se realidade. A estabilidade social vai ser testada em Portugal.

Este Orçamento não impõe a realidade, a realidade é que impôs este Orçamento. Não é coragem, mas desespero, o que nos traz a este vórtice danado. O lirismo do crescimento económico para o próximo ano persiste, aliás, o que é pouco prudente para quem quer persuadir credores. Enquanto isso, o PSD finge que pode não aprovar o Orçamento e o PS entretém-se em golpes palacianos de comunicação para sacudir a água para o capote da oposição. Do seu palácio falido, o primeiro-ministro olha os seus contribuintes. "Ave Socrates, morituri te salutant" - aqueles que vão pagar saúdam-te.



Pedro Santos Guerreiro in Jornal de Negócios

1 comentário:

Anónimo disse...

Afinal este OE é como o Requiem que Mozart estava a escrever. Talvez o seu destino seja ficar inacabado