terça-feira, outubro 19, 2010

Mais é de mais

Conversávamos, depois do jantar, do poder das palavras num mundo onde elas são permanentemente prostituídas e adulteradas.


Disse o meu filho mais velho, o Pedro: "As palavras enchem ideias, não enchem barrigas." Há um fundo de verdade nesta afirmação. Mas eu acredito, e sempre acreditei, que as palavras podem modificar o destino de milhões de homens, e provocá-los a agir. O que está a acontecer no nosso país é elucidativo. O paradigma está a alterar-se, já se alterou, e os nossos políticos, culturalmente muito enfezados, agem na mesma esquadria de há trinta e quarenta anos. Quero dizer: obedecem, cegamente, ao que do exterior lhes sussurram, e abdicam de criar um esquema próprio de solução dos problemas nacionais.


Sei que é difícil, mas não impossível. Berlim manda e Bruxelas é o porta-voz. Porém, alguém tem de bater o pé a essa hegemonia. Desde Bismarck que o alemão vem por aí abaixo, com armas na mão. E houve 1914-18 e 1939-45. Derrotados e humilhados, serviram de veículo a ressentimentos seus e de outros. A Alemanha não precisa da bomba nem do campo de concentração para ser a potência dominante na Europa. Chega-lhe e sobra-lhe a força da economia.


Existimos, como várias vezes tenho escrito e dito, numa democracia de superfície e de aparências. Vejamos: podemos, em consciência, aceitar um regime onde, há mais de trinta anos, o PSD e o PS são reinantes?, ignorando-se a importância dos dois milhões de eleitores do PCP, do Bloco de Esquerda e de outras organizações políticas? O sistema foi minuciosamente organizado para que as coisas assim fossem e sejam. Porém, o tempo é outro. E está a ver-se o imbróglio a que a birra de dois cavalheiros tem conduzido o País e feito crescer as nossas angústias.


A Direita e a Extrema-Direita avançam em toda a Europa. A Europa é uma massa inerte que só existe porque a Alemanha assim o permite. Basta atentar na teimosia abstrusa de Ângela Merkel, no pungente problema grego, para nos apercebermos do carácter unilateral e arbitrário de uma política que somente dá garantias e suporte aos mais fortes. O renascimento da xenofobia, do racismo e dos movimentos neonazis não acontece por acaso. A Esquerda abandonou as velhas bandeiras que a qualificavam, e esqueceu as causas que a iluminavam. Só agora, um pouco em Itália e em França, se discute e debate o torção a que a História foi submetida. Os novos problemas que emergiram, com o financiamento do capital, o movimento migratório, a fome como endemia, a exclusão (ideológica, cultural, identitária) a que assistimos, um pouco por todo o lado, assemelham-se aos anos que antecederam a queda da República de Weimar.


Em Portugal, cujo provincianismo atingiu as fronteiras do batatolino, dois dirigentes partidários andam às turras, e os seus discursos levam-nos até ao desgosto da palavra. Neles nada existe de original, de arrojado, de desafiante e de motivador. Neste caso, as palavras não enchem ideias, porque os seus protagonistas não as têm, nem enchem barrigas porque as deles já estão a abarrotar.


Todos os dias o meu e-mail traz-me notícias desacreditantes. É a mentira sem pejo, a falta de carácter e de grandeza, ou as reformas (duas, três e quatro!) de "gestores" que pouco mais fizeram do que se cuidar a eles próprios, através de contratos verticais que lhes garantem largos e felizes anos sem susto nem aflição. E nunca será de mais insistir nesta indignidade, quando um governo, dito socialista, pratica a "blitzkrieg" às vidas dos portugueses mais fragilizados, mais impotentes e mais incapazes de reagir. Quando foi dos salários em atraso e da fome grassante em Setúbal, o bispo D. Manuel Martins foi o tutor de um protesto que chegou à Imprensa estrangeira. É verdade que a Igreja actual tem tomado outras formas de indignação, e as suas organizações desempenham um papel importantíssimo na luta contra a fome e a miséria. É grato, mas não chega. Exactamente porque a Igreja, por si só, não pode resolver a questão, que é, sobretudo, uma questão política.


Como se pode alterar estas situações, tendo presente que o "mercado", a finança, o capitalismo, enfim, tem nas mãos as rédeas de todos os poderes e de todas as decisões?


Creio que o valor moral do ser humano está dependente das circunstâncias. Ortega o disse. Todavia, o ser humano dispõe de força suficiente para alterar as circunstâncias. Historicamente, os ensinamentos são de molde a alimentar as nossas esperanças e a estimular as nossas desafrontas. Não podemos mais admitir as humilhações a que diariamente somos submetidos. Nem aceitar viver nesta mentira constante, nesta falta de escrúpulos e de pudor.


Mais é de mais. De que estamos à espera?


Baptista Bastos in Jornal de Negócios

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